É sem ponta de ironia que afirmo considerar um enorme privilégio ser hoje Embaixador de Portugal em Harare.
Colegas que aqui serviram no passado julgarão saber a que me refiro. E estão, em parte, certos: o clima ainda é fantástico; a cidade ainda é espaçosa, verde e acolhedora; o país ainda é lindíssimo; e as pessoas, apesar de em menor número devido à emigração forçosa de quase um terço da população, ainda são encantadoras. É verdade que o Zimbabué continua a ser um posto agradabilíssimo.
Mas mais do que agradável, este posto tornou-se, nos últimos anos, essencialmente pelas más razões, também muito interessante.
Para quem gosta do fenómeno político e de relações internacionais, é fascinante poder ser espetador destacado de um processo que tem feito parte integrante das agendas internacional e europeia.
É um pouco como participar na História, conhecer os seus integrantes e ter inclusivamente a veleidade de os influenciar. E tudo isto num ambiente de relativa segurança e conforto. Viver no Zimbabué constitui, para além do mais, uma intrigante viagem ao passado.
Quem, como eu, anda na casa dos 50, é aqui sistematicamente assaltado por flashbacks da sua juventude e infância. Seja pela retórica anticolonial e very sixties do discurso político do regime, seja pelo quotidiano de uma capital sem carros devido à falta de combustível, seja ainda pela experiência renovada de viver sem um sistema bancário, se não mesmo sem um sistema financeiro.
Como em outros países da região, Portugal é reconhecido no Zimbabué. Podemos não estar na primeira linha da ajuda internacional ao país, mas os zimbabueanos sabem quem nós somos. Os mais cultos e educados remetem-nos para os primeiros contactos que a civilização que é hoje o Zimbabué teve com europeus.
Assalta-lhes a nostalgia de tempos em que as relações com a Europa eram mutuamente vantajosas e que não estavam centradas em contenciosos. Invejam também o relacionamento que constatam termos com as nossas ex-colónias.
Não deixa, pois, de ser algo frustrante para o Embaixador em Harare que, num país onde dispomos de um grande capital de simpatia e de relações históricas relevantes, não possamos ter atualmente um sólido relacionamento bilateral. As razões são conhecidas e nelas não me irei deter. Fica a esperança de que uma evolução positiva do regime político do Zimbabué possa trazer a normalização dos seus relacionamentos externos, principalmente com a UE, e que tal permita a Portugal explorar o potencial existente, que passa muito também pelo interesse que aqui existe pela língua portuguesa.
É certo que o Zimbabué dificilmente alcançará um lugar cimeiro no rol de intimidades do nosso país. Faz, no entanto, parte daquele grupo de países com os quais sempre houve e haverá uma relação. Poderá ser, consoante as conjunturas, mais ou menos intensa do ponto de vista político e mais ou menos benéfica do ponto de vista económico.
Mas, por um número infindável de razões, o Zimbabué é um daqueles países que conta para Portugal e que continuará a contar no futuro. E qualquer Embaixador gosta de estar colocado em países que contam.
João da Câmara
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