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Embaixadora Ana Gomes

"A diplomacia portuguesa ficou claramente a ganhar com o aproveitamento das qualidades, sensibilidades, talentos e experiências que as mulheres trouxeram à carreira diplomática".

Entrevista à Embaixadora Ana Gomes

2015


1. Foi recentemente distinguida com o prémio de eurodeputada "ativista do ano", facto que não surpreende quem conhece a sua determinação e capacidade de trabalho, e que constitui também um motivo de orgulho para Portugal e para a carreira diplomática portuguesa. Em que medida é que sua experiência profissional como diplomata lhe foi útil para o exercício das funções de parlamentar europeia?
Foi de insuperável utilidade. Quer pela preparação relativamente aos temas de que me ocupo no Parlamento Europeu, como membro das Comissões de Assuntos Externos, Desenvolvimento e da Subcomissão de Segurança e Defesa; quer pela experiência de negociação, pois dada a representação dos diferentes grupos políticos no Parlamento Europeu, sem que nenhum tenha a maioria, todos os relatórios e resoluções têm de ser objeto de compromissos e de procura de consensos tão abrangentes quanto possível.
Neste quadro, a experiência multilateral que a carreira diplomática me proporcionou, em postos como Genebra ou Nova Iorque em especial, equipou-me bem para as funções de eurodeputada.
As colegas da Secretaria de Estado que, volta e meia, me perguntam como é o trabalho no Parlamento Europeu, costumo responder que, para mim, é mais ao menos como o trabalho multilateral na REPER, NUOI, OSCE ou ONU. Com uma substancial diferença: é que, como socialista, não preciso de pedir ou receber instruções e eu própria escolho as causas por que terço armas.
 
2. Pondera um dia regressar à carreira diplomática? Qual foi o seu posto mais marcante?
Poderei voltar, sem dúvida. Aliás, estou preparada para voltar a qualquer momento. E isso - o facto de ter uma carreira profissional a que posso sempre voltar - tem sido muito importante para a independência da minha actuação política.
Todos os meus postos foram marcantes - vivi-os intensamente do ponto de vista profissional e pessoal. Diverti-me muito e enriqueci culturalmente em todos eles. Destaco o primeiro e o último: Genebra - porque foi o primeiro e porque foi aí que o meu querido Embaixador António Costa Lobo me pegou o bichinho dos direitos humanos, de que nunca me libertei nem quero libertar. E Jacarta: por tudo, que é Timor Leste e muito mais - tive o privilégio de viver o PREC indonésio, fazer lá muitos amigos e ficar com aquele deslumbrante arquipélago e os seus povos para sempre no coração e na memória; as saudades, sempre que posso mato-as, voltando lá em visita.
 
3. Como vê a integração das mulheres na carreira diplomática portuguesa (carreira essa que até ao 25 de Abril lhes era vedada)? Hoje em dia, as dificuldades - sobretudo no que à família diz respeito - ainda são maiores para as mulheres ou serão já equivalentes às dos homens? Que conselho daria às jovens diplomatas?
Penso que a integração está hoje adquirida, no sentido em que ninguém ousa já pôr em causa que as mulheres sejam tão capazes como os homens para o desempenho de funções diplomáticas (quando entrei ainda tive de ouvir um diplo-troglodita e algumas caras -metades de colegas questionarem as capacidades daquelas que vinham roubar lugares aos homens...).
Penso também que a diplomacia portuguesa ficou claramente a ganhar com o aproveitamento das qualidades, sensibilidades, talentos e experiências que as mulheres trouxeram à carreira diplomática, além do impacte positivo na imagem do Portugal democrático que elas ajudaram a projectar. Aliás, as próprias relações pessoais e funcionais dentro do MNE mudaram para muito melhor, ou seja, tornaram-se mais democráticas e menos artificialmente hierarquizadas, graças à presença de mulheres nos quadros diplomáticos.

Claro que nada disto se fez sem custos e sem combates - travados por mulheres e homens progressistas na Secretaria de Estado. Eu não me esqueço de que, quando a Anabela Cardoso se candidatou para o Tóquio, nos anos 80, houve quem no Conselho sustentasse que o Japão "não era posto para uma mulher"... Nem daquela outra colega, colocada numa capital europeia, cujo embaixador lhe atribuía a classificação de excelente, mas por detrás escrevia ao Secretário-Geral a pedir que ela não fosse promovida, supostamente porque o embaraçaria por receber muitas vezes o MNE local em casa...
Um dos preços que muitas mulheres da minha geração pagaram foi ter de escolher a carreira, em detrimento da família, ou pelo menos do cônjuge. Hoje, felizmente, há vários casos em que a Secretaria de Estado pelo menos procurou conciliar as colocações com a vida familiar, em particular para casais diplomatas - e bem sabemos como é difícil, sendo tão escassos os postos. Mas para outros diplomatas em que os cônjuges têm outras carreiras profissionais, é evidente que as opções familiares dilacerantes persistem. E embora tanto homens como mulheres defrontem esse problema colocado pela profissão diplomática de um dos cônjuges, julgo que há mais homens que mulheres a conseguir fazer os cônjuges aceitarem prescindir ou interromper a sua atividade profissional para acompanhar aquele que é diplomata. O problema não é fácil de resolver, embora haja países que tenham experiências bem sucedidas de integração profissional dos cônjuges dos diplomatas em diferentes postos.

Que conselho daria às jovens diplomatas? Dar o máximo e o melhor, mas preparadas para lutar pelos seus direitos e não aparar golpaças. Ah, e ter bem presente que há vida para além da carreira diplomática. Pensando bem, dava os mesmos conselhos aos jovens diplomatas....
 
4. Acha que já há uma integração da perspetiva do género - ou seja de promoção e atenção ao estatuto da mulher - na política externa portuguesa?
Não. Penso que ainda não há - e os/as diplomatas têm muita responsabilidade nisso - afinal quem é que «faz a cabeça» do poder político no MNE na maior parte dos assuntos?
Se não, vejamos o que se passa em três áreas-chave:

há 8 anos foi aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU a resolução 1325, que recomenda o envio de mais mulheres para missões de paz, de negociação e resolução de conflitos, etc... por razões que se prendem com a eficácia dessas próprias missões. Tem o MNE uma política de promover a candidaturas de mulheres portuguesas para esse tipo de missões, ou de insistir com outros departamentos do Estado (Defesa, Justiça, Polícias, etc.) para que candidatem mulheres? Não tem. Só agora, ao fim de 8 anos, o Governo está a trabalhar no estabelecimento de uma Plano Nacional de Ação para aplicação da resolução 1325 - e a iniciativa de o fazer, embora apoiada pelo MNE, pertenceu à CIG/PCM....

Outro exemplo: temos uma política de cooperação para o desenvolvimento que dê prioridade ao empoderamento das mulheres ou àqueles dos Objetivos de Desenvolvimento do Milénio que mais diretamente respeitam aos estatutos e condições de vida das mulheres. Se a prioridade existe, está ela orçamentalmente suportada?

Ainda uma terceira área: temos uma política de apoio à emigração e comunidades portuguesas que privilegie ir ao encontro das necessidades e potencialidades das mulheres, incluindo de forma discernível no orçamento?

5. Considera que os diplomatas têm um espaço de intervenção cívica para além do estrito exercício das suas funções (e dentro dos limites impostos pelo Estatuto da Carreira Diplomática, quando estão no ativo)? 
Com certeza que sim. Os diplomatas não são eunucos civicamente, como disse uma vez o Francisco Seixas da Costa. Ninguém os pode proibir civicamente - e há inúmeras maneiras de o fazer, incluindo apoiando ONG, escrevendo artigos, livros ou em blogues, etc.
A política externa é política, reconheçamo-lo. Pode não ser pensada e exercida de forma partidária, mas lá implicar opções políticas implica.
Eu andei vinte e tal anos a parafrasear o Raul Solnado "A minha política é... a política externa". Assumindo que, como profissional da diplomacia, fazia política. Embora não dependente de opção partidária.

Eu nunca me abstive, por exemplo, de tomar posição cívica de apoio a candidatos à Presidência da República. E a partir de 2002 assumi uma filiação partidária, embora estivesse ainda no serviço ativo. Mas nunca houve ninguém, na carreira ou de fora dela, que me pudesse apontar ter tido um comportamento partidário ou discriminatório em relação a qualquer formação ou agente partidário.
 
6. Sindicalismo rima com diplomacia? Que sugestões daria à Direção da ASDP? Quais as áreas que mais carecem de atenção e ação?
Rima, pode rimar, já muitas vezes rimou ao longo dos últimos 30 anos. Tudo depende dos objetivos por que se bate a ASDP e do grau de adesão que suscita aos funcionários diplomáticos. Bem sei que a dispersão dos diplomatas pelo mundo não favorece a mobilização sindical, a par de outros fatores. Mas foi graças a movimentações sindicais que tivemos a revisão dos abonos no quadro externo nos anos 80 e a Mútua e a reforma dos Estatutos da Carreira Diplomática nos anos 90. Claro que a carolice de uns tantos/as conta muito - designadamente de quem dá cara e corpo às direções da ASDP.
O percurso da ASDP demonstra que há muitas formas de conjugar uma intervenção sindicalmente forte e eficaz com o mais apurado estilo diplomático, de modo a enfrentar a proverbial leveza administrativa de quem responde politicamente pela política externa lusa.

Julgo que a ADSP deve procurar concertar mais a sua ação, no que for possível, com outras formações sindicais da função pública e designadamente o Sindicato dos Trabalhadores das Missões Diplomáticas e Consulares. Há muitas reivindicações que podem ser comuns (os seguros de saúde, por exemplo) e há discrepâncias que podem e devem ser evitadas (as reformas faraónicas para alguns trabalhadores dos serviços externos, por exemplo), para beneficio sobretudo do Estado. Há também problemas graves com o estatuto e as condições de contratação de funcionários locais em muitas embaixadas e missões (em Jacarta, por exemplo, os funcionários locais que eu contratei e que leal e dedicadamente servem o Estado português desde 1999 continuam a não ter direito a reforma, seguro de saúde e outros direitos previstos nas leis laborais locais). A ASDP não devia ignorar esses problemas e poderia articular-se com outros sindicatos para eles serem resolvidos. Isso beneficiaria, sem dúvida, os associados da ASDP, ao reduzir muitos problemas enfrentados nos postos externos.

Como suspendi a carreira em 2003, não sei quais serão hoje as principais prioridades para a acção da ASDP. Gostava que já estivesse resolvida aquela que mais nos preocupava nessa altura - a inexistência de seguro de saúde no quadro externo.

Perguntas por: Francisco Alegre Duarte e Sara Martins

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